Correspondência de Marx e Engels

Engels a Conrad Schmidt<br> (em Berlim) - [I Parte]

Se­lecção: Fran­cisco Melo

Tra­dução: José Ba­rata-Moura

 

Lon­dres, 27 de Out[ubro] de 1890

 

Caro Sch­midt,

Em­prego a pri­meira hora livre para lhe res­ponder. Creio que fará muito bem em aceitar o [lugar no] Zü­ri­cher Post (1). Do ponto de vista eco­nó­mico, V. po­derá sempre aprender muito lá, par­ti­cu­lar­mente se tiver em vista que Zü­rich, apesar de tudo, é apenas um mer­cado de di­nheiro e um mer­cado de es­pe­cu­lação de ter­ceira ordem e que, por con­se­guinte, as pres­sões que aí se fazem sentir estão en­fra­que­cidas, ou pro­po­si­ta­da­mente fal­si­fi­cadas, por um duplo ou triplo re­flexo [Rücks­pi­e­ge­lung]. Mas V. apren­derá a co­nhecer pra­ti­ca­mente a en­gre­nagem e es­tará obri­gado a se­guir, em pri­meira mão, as in­for­ma­ções da Bolsa [Böl­sen­be­ri­chte] de Lon­dres, Nova Iorque, Paris, Berlim, Viena, e o mer­cado mun­dial abrir-se-lhe-á, assim – no seu re­flexo [Re­flex] como mer­cado de di­nheiro e de va­lores [Ef­fekte]. Passa-se com os re­flexos [Re­flexe] eco­nó­micos, po­lí­ticos e ou­tros in­tei­ra­mente como com os no olho hu­mano: atra­vessam uma lente con­ver­gente e apre­sentam-se, por­tanto, in­ver­tidos [ver­kehrt], de ca­beça para baixo [auf dem Kopf]. Só que o dis­po­si­tivo ner­voso [Ner­ve­nap­parat], que os põe no­va­mente em pé [auf die Füsse] para a re­pre­sen­tação, falta. O homem do mer­cado de di­nheiro vê o mo­vi­mento da in­dús­tria e do mer­cado mun­dial, pre­ci­sa­mente, apenas no re­flexo [Wi­ders­pi­e­ge­lung] in­versor [um­keh­rende] do mer­cado de di­nheiro e do mer­cado de va­lores e, assim, para ele, o efeito [Wir­kung] torna-se causa [Ur­sache]. Isto vi eu já nos anos 40 em Man­chester: para o curso da in­dús­tria e os seus má­ximos e mí­nimos pe­rió­dicos, as in­for­ma­ções da Bolsa, de Lon­dres, eram ab­so­lu­ta­mente inú­teis, porque os se­nhores que­riam ex­plicar tudo a partir de crises do mer­cado de di­nheiro, que to­davia, na mai­oria das vezes, eram elas pró­prias apenas sin­tomas. Na­quela al­tura, tra­tava-se de re­futar o sur­gi­mento das crises in­dus­triais a partir de uma so­bre­pro­dução [Über­pro­duk­tion] tem­po­rária, e, para mais, a coisa tinha ainda um lado ten­den­cioso [ten­den­zi­elle], que con­vi­dava à de­tur­pação [Ver­drehung]. Esse ponto agora de­sa­pa­rece – para nós, pelo menos, de uma vez por todas –, além de que é de certo um facto que o mer­cado de di­nheiro pode ter também as suas crises pró­prias, nas quais as per­tur­ba­ções di­rectas da in­dús­tria apenas de­sem­pe­nham um papel su­bor­di­nado ou mesmo não de­sem­pe­nham papel ne­nhum; e aqui há ainda muito para es­ta­be­lecer e para in­ves­tigar também, par­ti­cu­lar­mente nos úl­timos 20 anos do ponto de vista his­tó­rico.

Onde há di­visão do tra­balho à es­cala so­cial, há também au­to­no­mi­zação dos tra­ba­lhos par­ce­lares uns face aos ou­tros. A pro­dução é o [que é] em úl­tima aná­lise de­ci­sivo. Mas, desde que o co­mércio com os pro­dutos se au­to­no­miza face à pro­dução pro­pri­a­mente dita segue um mo­vi­mento pró­prio que, com efeito, é do­mi­nado grosso modo pelo da pro­dução, mas que, no por­menor e dentro dessa de­pen­dência geral, segue con­tudo, por sua vez, leis pró­prias que re­sidem na na­tu­reza deste novo factor, que tem as suas fases pró­prias e que, pelo seu lado, se re­per­cute de novo sobre o mo­vi­mento da pro­dução. A des­co­berta da Amé­rica foi de­vida à sede de ouro, que an­te­ri­or­mente já tinha im­pe­lido os por­tu­gueses para África (cf. Edel­me­tall-Pro­duk­tion de So­et­beer (2)), porque a in­dús­tria eu­ro­peia, tão po­de­ro­sa­mente alar­gada nos sé­culos XIV e XV, e o co­mércio que lhe cor­res­pondia pre­ci­savam de mais meios de troca do que aqueles que a Ale­manha – o  grande país da prata entre 1450-1550 – podia for­necer. A con­quista da Índia pelos por­tu­gueses, ho­lan­deses, in­gleses, entre 1500-1800, tinha por ob­jec­tivo a im­por­tação da Índia; na ex­por­tação para lá nin­guém pen­sava. E, no en­tanto, que co­lossal re­per­cussão estas des­co­bertas e con­quistas, con­di­ci­o­nadas pu­ra­mente por in­te­resses co­mer­ciais, ti­veram sobre a in­dús­tria – só as ne­ces­si­dades de ex­por­tação para esses países cri­aram e de­sen­vol­veram a grande in­dús­tria.

Passa-se o mesmo com o mer­cado de di­nheiro. Assim que o co­mércio de di­nheiro se se­para do co­mércio de mer­ca­do­rias tem – sob certas con­di­ções, postas pela pro­dução e pelo co­mércio de mer­ca­do­rias, e dentro desses li­mites – um de­sen­vol­vi­mento pró­prio, par­ti­cular, [tem] leis de­ter­mi­nadas pela sua na­tu­reza pró­pria e fases à parte. Se ainda se acres­centar a isto que o co­mércio de di­nheiro se alarga, neste ul­te­rior de­sen­vol­vi­mento, a co­mércio de va­lores, se ainda se acres­centar que estes va­lores não são apenas pa­péis do Es­tado, mas ac­ções da in­dús­tria e dos trans­portes, [se se acres­centar] que o co­mércio de di­nheiro con­quista, por­tanto, para si, uma do­mi­nação di­recta sobre uma parte da pro­dução que, grosso modo, o do­mina – a re­acção do co­mércio de di­nheiro sobre a pro­dução tornar-se-á mais forte e mais com­pli­cada. Os co­mer­ci­antes de di­nheiro são pro­pri­e­tá­rios de ca­mi­nhos-de-ferro, minas [Bergwerke], fer­ra­rias [Ei­senwerke], etc. Estes meios de pro­dução tomam um duplo as­pecto: a sua ex­plo­ração [Be­trieb] tem de se ori­entar ora se­gundo os in­te­resses da pro­dução ime­diata ora, porém, também se­gundo as ne­ces­si­dades dos ac­ci­o­nistas, na me­dida em que são co­mer­ci­antes de di­nheiro. Exemplo mais fla­grante disto: os ca­mi­nhos-de-ferro norte-ame­ri­canos, cuja ex­plo­ração de­pende in­tei­ra­mente das ope­ra­ções de Bolsa do mo­mento de um Jay Gould, Van­der­bilt, etc. – to­tal­mente alheias a essa via es­pe­cial e aos seus in­te­resses qua (3) meio de co­mu­ni­cação. E mesmo aqui em In­gla­terra vimos as lutas de de­cé­nios das di­versas so­ci­e­dades de ca­mi­nhos-de-ferro pelas zonas de fron­teira entre elas – lutas onde imenso di­nheiro foi es­ban­jado, não no in­te­resse da pro­dução e das co­mu­ni­ca­ções, mas uni­ca­mente por culpa de uma ri­va­li­dade que, na mai­oria dos casos, apenas tinha por ob­jec­tivo pos­si­bi­litar ope­ra­ções de Bolsa dos co­mer­ci­antes de di­nheiro pos­sui­dores de ac­ções.

(con­tinua num pró­ximo nú­mero)

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(1) A 20 de Ou­tubro de 1890, Conrad Sch­midt in­for­mava En­gels de que lhe ha­viam di­ri­gido um con­vite para in­te­grar a re­dacção do jornal de Zü­ri­cher Post, na secção que se ocu­pava dos as­suntos da Bolsa. Tra­tava-se de um jornal de­mo­crá­tico, que se pu­blicou em Zu­rique entre 1879-1936.

(2) Cf. Adolf Sto­et­beer, Edel­me­tall-Pro­duk­tion und Wert­verhältnis zwis­chen Gold und Silber seit der Ent­dec­kung Ame­ri­ka’s bis zur Ge­genwart [A Pro­dução de Me­tais Pre­ci­osos e a Re­lação de Valor entre Ouro e Prata desde a Des­co­berta da Amé­rica até ao Pre­sente], Gotha 1879.

(3) Em latim no texto: como, en­quanto.

 




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